Breves Considerações sobre a Desconsideração da Personalidade Jurídica e o Projeto de Lei nº.2.426 do Deputado Ricardo Fiúza

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Ab initio, cumpre esclarecer que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entity, lifting or piercing the corporate veil, cracking open the corporate shell) não foi introduzida no direito positivo brasileiro pela Lei nº. 10.406/2002 (art. 50) haja vista que constava das seguintes leis especiais: Código de Defesa do Consumidor (art. 28 da Lei nº. 8.078/90); Lei Antitruste (art. 18 da Lei nº. 8.884/94); e Lei do Meio Ambiente (art. 4º. da Lei nº. 9.605/98).

 

Com a personificação jurídica da sociedade, que nos termos do art. 985 do Código Civil ocorre com inscrição dos seus atos constitutivos (contrato social ou estatuto) no registro próprio (se empresária, no Registro Público de Empresas Mercantil e Atividades Afins; se simples, no Cartório do Registro Civil das Pessoas Jurídicas), ocorre a aquisição de capacidade (ou titularidade) jurídica negocial, processual e patrimonial.

 

Assim, observa Fábio Ulho Coelho (Cf. Manual de Direito Comercial. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 126/127):

 

?Não é suficiente a simples insolvência do ente coletivo, hipótese em que, não tendo havido fraude na utilização da separação patrimonial, as regras de limitação da responsabilidade dos sócios terão ampla vigência. A desconsideração é instrumento de coibição do mau uso da pessoa jurídica; pressupõe, portanto, o mau uso. O credor da sociedade que pretende a sua desconsideração deverá fazer prova da fraude perpetrada, caso contrário suportará o dano da insolvência devedora. Se a autonomia não foi utilizada indevidamente, não há fundamento para a desconsideração?. (grifo nosso)

 

Contudo, comumente se verifica na Justiça do Trabalho interpretação contra legem da desconsideração da personalidade jurídica estribada na panacéia de que ?tudo é permitido em prol do hipossuficiente?. Isto porque o art. 28 do Estatuto Protetivo Consumeirista ? de equivocada aplicação analógica por parte dos magistrados trabalhistas ? elenca pormenorizadamente os requisitos ensejadores da aplicação da teoria: ?…abuso de direito, excesso de poder; infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social…?.

 

Neste sentido, destacamos o seguinte julgado:

 

?EXECUÇÃO ? RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS ? DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA ? Via de regra, os bens particulares dos sócios não podem ser objeto de constrição judicial (art. 596/CPC). Entretanto, a responsabilidade deles subsiste, quanto aos créditos trabalhistas, independentemente de terem sido acionados na fase de conhecimento, por aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, fulcrada no art. 28, da Lei nº 8.078/90, c/c o art. 135/CTN, e no princípio de que o risco do empreendimento econômico pertence exclusivamente ao empregador (art. 499/CLT).’ (TRT 3ª R. ? AP 1570/03 ? 1ª T. ? Rel. Juiz Marcus Moura Ferreira ? DJMG 09.05.2003 ? fonte: Júris Síntese Millennium ? maio/junho de 2004 ? nº. 211235 )

 

Assinala, ainda, o insigne Comercialista (op.cit., p. 158):

 

?(…) a Justiça do Trabalho tem protegido o empregado deixando de aplicar as regras de limitação da responsabilidade dos sócios. Tal orientação, de base legal questionável, deriva, na verdade, da intenção de proteger o hipossuficiente, na relação de emprego?. (grifo nosso)


Espeficicamente sobre o art. 50 do Código Civil, é uníssono o posicionamento da doutrina acerca da imprecisão do dispositivo:

 

?O CC de 2002, art. 50, ensaia uma incursão nos domínios da desconsideração da personalidade jurídica, aplicando-a em apenas uma hipótese: abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial?. (cf. Waldo Fazzio Júnior. Manual de Direito Comercial. 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 158).

 

?A singeleza da redação do artigo 50 do Código Civil de 2002, que, com certeza, acarretará uma série de dúvidas na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, foi a tempo e hora percebida pelo parlamentar brasileiro, tanto que, em plena vacatio legis do novo Código, foi apresentada a Proposição PL-7160/2002, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza…? (cf. Manoel de Queiroz Pereira Calças. Sociedade Limitada no Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2003, p. 161)

 

O Projeto de Lei nº. 2.426/2003 ao prescrever a necessidade de imputação objetiva dos atos abusivos praticados e indicação dos administradores ou sócios dele beneficiados (art. 2º.), aos quais será concedido o prévio exercício do contraditório (art. 3º.) amolda-se precisamente aos princípios doutrinários que informam a desconsideração da personalidade jurídica. Afora isso, seus arts. 5º. e 6º. repelem a banalização do instituto consignando que o art. 28 da Lei nº. 8.078/90, bem como o art. 18 da Lei nº. 8.884/94 têm aplicabilidade restrita às relações jurídicas de direito material que regulam (relação de consumo e infração da ordem econômica). O art. 7º. reitera a vedação a qualquer interpretação transversa e a incúria na aplicação da teoria :

 

?Art. 7º. O juiz somente pode declarar a desconsideração da personalidade jurídica nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva?. (grifo nosso)

 

A desconsideração da personalidade jurídica deve ser apoiada em fatos concretos que tornem a medida excepcional, seus efeitos só poderão incidir sobre os sócios e administradores que efetivamente praticarem abuso ou fraude na utilização da pessoal jurídica, razão pela qual compartilhamos do entendimento de que não pode ser declarada incidentalmente em processo movido contra a sociedade. Neste sentido é o escólio de Manoel de Queiroz Pereira Calças (op.cit):

 

?É de rigor que haja processo autônomo em face dos sócios que praticaram os atos fraudulentos ou abusivos, sob o escudo da sociedade, devendo ser descritos quais os atos acoimados de abusivos ou fraudulentos, ensejando-se o direito de defesa, com observância do princípio do contraditório?.

 

Por fim, necessário destacar a possibilidade de aplicação inversa da teoria, permitindo, destarte, desconsiderar a personalidade da sociedade para responsabilizar o sócio pelo pagamento da obrigação contraída em seu nome individual e que desfalca seu patrimônio particular desviando bens para o patrimônio social.

O Projeto de lei nº. 2.426/2003 melhor disciplina o ingresso da teoria desconsideração da personalidade jurídica no direito codificado brasileiro.

 

?PROJETO DE LEI – Regulamenta o disposto no Art. 50 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002, disciplinando a declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica e dá outras providências.

 

O Congresso Nacional decreta:

 

Art. 1°. As situações jurídicas passíveis de declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica obedecerão ao disposto no art. 50 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 e aos preceitos desta lei.

 

Art. 2º. A parte que se julgar prejudicada pela ocorrência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial praticados com abuso da personalidade jurídica indicará, necessária e objetivamente, em requerimento específico, quais os atos abusivos praticados e os administradores ou sócios deles beneficiados, o mesmo devendo fazer o Ministério Público nos casos em que lhe couber intervir na lide.

 

Art. 3°. Antes de declarar que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, o Juiz lhes facultará o prévio exercício do contraditório, concedendo-lhes o prazo de quinze dias para produção de sua defesas.

§1°. Sendo vários os sócios e ou os administradores acusados de uso abusivo da personalidade jurídica, os autos permanecerão em cartório e o prazo de defesa para cada um deles contar-se-á, independentemente da juntada do respectivo mandado aos autos, a partir da respectiva citação se não figurava na lide como parte e da intimação pessoal se já integrava a lide, sendo-lhes assegurado o direito de obter cópia reprográfica de todas as peças e documentos dos autos ou das que solicitar, e juntar novos documentos.

§ 2°. Nos casos em que constatar a existência de fraude à execução, o juiz não declarará a desconsideração da personalidade jurídica antes de declarar a ineficácia
dos atos de alienação e de serem excutidos os bens fraudulentamente alienados.

 

Art. 4°. É vedada a extensão dos efeitos de obrigações da pessoa jurídica aos bens particulares de sócio e ou de administrador que não tenha praticado ato abusivo da personalidade, mediante desvio de finalidade ou confusão patrimonial, em detrimento dos credores da pessoa jurídica ou em proveito próprio.

 

Art. 5°. O disposto no art. 28 da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, somente se aplica às relações de consumo, obedecidos aos preceitos desta lei, sendo vedada a sua aplicação a quaisquer outras relações jurídicas.

 

Art. 6º. O disposto no art. 18 da Lei n°- 8.884, de 11 de junho de 1994, somente se aplica às hipóteses de infração da ordem económica, obedecidos aos preceitos desta lei, sendo vedada a sua aplicação a quaisquer outras relações jurídicas.

 

Art. 7°. O juiz somente pode declarar a desconsideração da personalidade jurídica nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva.

 

Art. 8°. As disposições desta lei aplicam-se a todos os processos judiciais em curso em qualquer grau de jurisdição, sejam eles de natureza cível, fiscal ou trabalhista.

 

Art. 9°. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação?.

Fonte: Luiz Carlos Pantoja Advogados